
Na cosmologia Munduruku, o rio Tapajós foi criado pela divindade Karosakaybu, a partir do leite do tucumã, como uma espécie de paraíso. Na bacia desse que é um dos maiores corpos de água da Amazônia, Karosakaybu criou os Munduruku e, para garantir alimento para o povo, transformou indígenas em animais.
O matrinxã, peixe facilmente encontrado em igarapés na região, foi transformado a partir de mulheres Munduruku, e por isso ele é pescado com exclusividade para uma festa tradicional que costuma ocorrer todo mês de setembro. Na ocasião, pescadores utilizam o timbó, planta venenosa jogada na água para deixar os peixes atordoados, e por semanas os indígenas só se alimentam da espécie.
“A gente faz uma brincadeira que alegra os peixes. Os meninos brincam aqui na aldeia e os peixes brincam na água”, conta Juarez Saw Munduruku, cacique da aldeia Sawré Muybu, localizada no território de mesmo nome situado no médio Tapajós, entre os municípios paraenses de Itaituba e Trairão. “O matrinxã foi feito de gente, foi transformado de gente Munduruku. Por isso que essa pescaria não é como as outras”, explica.
Segundo Juarez, muitos peixes têm histórias de origem semelhantes na cosmologia Munduruku. A pesca é o principal meio de subsistência do povo, mas, nos últimos anos, o consumo de peixes tem gerado preocupação entre a população devido às altas concentrações de mercúrio encontradas em algumas espécies. O matrinxã não está entre os mais contaminados, mas em outras espécies que estão entre as preferidas dos Munduruku as concentrações de mercúrio são preocupantes.


O alerta surgiu a partir de estudos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), publicados em novembro de 2021, que constataram que todos os indígenas de três aldeias da Terra Indígena Sawré Muybu tinham mercúrio no organismo, dos quais 60% apresentaram níveis do metal tóxico no organismo acima do limite tolerado: A OMS considera que o limite de segurança para níveis de mercúrio em fios de cabelo humano, biomarcador utilizado pela pesquisa da Fiocruz, é de 6 μg/g (microgramas por grama) pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O uso do metal na separação do ouro por garimpeiros da região seria um dos principais responsáveis pelo resultado.
De acordo com a OMS, os sistemas nervoso central e periférico são os mais afetados pela contaminação por mercúrio. Os fetos, quando expostos ao metal durante a gestação, são o principal grupo de risco, suscetíveis a desenvolver sintomas neurológicos na primeira infância como atraso cognitivo, dificuldade de atenção e atraso no desenvolvimento motor e de linguagem. Entre jovens e adultos, os principais sintomas são impactos na coordenação motora, perda de audição e de sensibilidade nos membros, além de dor de cabeça e alterações no sono.



Os estudos da Fiocruz foram baseados em coletas de amostras de cabelo dos indígenas realizadas no final de 2019. A escolha do biomarcador: Ferramenta de medida utilizada em estudos epidemiológicos. Indica normalidade ou anormalidade no funcionamento do organismo. envolveu o entendimento de que o consumo de pescados seria o principal fator de contaminação. Por meio desse consumo, o metal entra no organismo humano, ando pelo sistema digestivo, caindo na corrente sanguínea e então ando a ser absorvido por todos os sistemas e órgãos do corpo humano.
Desde os anos 1950, as regiões do alto Tapajós: Região de origem do Tapajós, a partir da confluência dos rios Juruena e São Manuel, na divisa entre Mato Grosso e Pará e médio Tapajós representam uma das principais localidades da atividade garimpeira no Brasil. A atividade cresceu em dois momentos: nos últimos anos da ditadura militar, início da década de 1980, absorvendo os garimpeiros que deixavam Serra Pelada, e nos últimos anos, impulsionada pelo governo Bolsonaro e suas sucessivas tentativas de flexibilização da legislação de mineração em áreas protegidas no país.
Ciclo de absorção do mercúrio
Mas de que forma o mercúrio utilizado pelos garimpeiros chega aos peixes e ao corpo humano? Para entender o ciclo de absorção da substância química na natureza, o InfoAmazonia visitou a TI Sawré Muybu e conversou com diversos especialistas.
Na atividade garimpeira, o mercúrio é utilizado em sua forma metálica para separar minúsculos grãos de ouro de outros sedimentos. O mercúrio tem a capacidade de, quando derretido, se unir a outros metais e formar amálgamas. Essas amálgamas são então queimadas, o mercúrio evapora e o ouro puro é obtido.
Com esse processo, a parte do mercúrio gasoso é liberada para a atmosfera e parte do mercúrio líquido acaba sendo despejada no ambiente. Em contato com a água, o metal sofre transformações químicas e tende a ficar preso na matéria orgânica do rio, sendo absorvido pelas partículas e depositado no leito do rio.

É no fundo dos rios que o mercúrio é transformado por bactérias em sua forma orgânica, o metilmercúrio. Essa forma, segundo Ana Claudia Santiago de Vasconcellos, pesquisadora em saúde pública da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz, é a “mais perigosa para a saúde humana”.
A partir de então, ele começa a ser absorvido pela cadeia alimentar. Primeiro sendo consumido por microalgas, larvas de peixes e insetos, além de outros animais aquáticos, como camarões e caranguejos. Esses organismos menores servem de alimento para animais maiores e o metilmercúrio vai se bioacumulando: Bioacumulação é o termo geral que descreve um processo pelo qual substâncias (ou compostos químicos) são absorvidas pelos organismos e biomagnificando: Biomagnificação é um fenômeno que ocorre quando há acúmulo progressivo de substâncias de um nível trófico para outro ao longo na cadeia alimentar ao longo da cadeia. Em outras palavras, sua concentração fica mais elevada em animais no topo da cadeia alimentar.
“Os peixes maiores e carnívoros, que ocupam o topo da cadeia trófica, têm concentrações maiores de metilmercúrio nos músculos do que os peixes que ficam na base da cadeia trófica, que são os herbívoros que se alimentam de sementes, frutas, folhas”, explica Vasconcellos. Por esse motivo, ela orienta as comunidades do rio Tapajós que evitem o consumo de peixes carnívoros.
Os peixes maiores e carnívoros, que ocupam o topo da cadeia trófica, têm concentrações maiores de metilmercúrio.
Ana Claudia Santiago de Vasconcellos, pesquisadora em saúde pública da Fiocruz
Entre os peixes carnívoros mais consumidos pelos Munduruku estão a piranha preta, o tucunaré e o filhote, nome dado ao filhote da espécie piraíba.

Embora, hoje, muitos garimpos utilizem o mercúrio metálico em câmaras fechadas, outros aspectos da atividade garimpeira contribuem para que o mercúrio em sua forma orgânica contamine os leitos dos rios. São os casos dos garimpos de barranco: garimpagem que desmata e destrói camadas do solo que depois de alagadas levam metais pesados para o leito do rio e da garimpagem por balsas: garimpagem em que a sucção de sedimentos por dragas contribui com a erosão de componentes químicos, facilitando sua absorção pela cadeia alimentar.
Diante dos altos índices de concentração de mercúrio entre os Munduruku que participaram da pesquisa da Fiocruz, Vasconcellos desenvolveu um projeto de livro didático para explicar esse ciclo de absorção. O material é focado em estudantes do sexto ao nono ano das escolas indígenas e está sendo traduzido para as línguas Munduruku e Yanomami, dois dos povos mais afetados pelo garimpo ilegal.
“A gente quer que as pessoas falem sobre isso nas escolas. O livro pretende criar um senso crítico, sensibilizar os jovens”, afirma a pesquisadora.
A tradução do livro para o Munduruku está sendo feita por Honésio Dacê Munduruku, representante dos professores do Médio Tapajós na Educação Escolar Indígena. Ele considera o projeto essencial para que todos tenham o às orientações sobre o mercúrio. “Com o livro didático ficará mais fácil para as aldeias entenderem”.
Segundo Honésio, a tradução tem sido difícil, porque o conteúdo é repleto de termos técnicos e científicos que não têm tradução para sua língua materna. As próprias palavras mercúrio, garimpo ou ouro não existem em Munduruku.
Honésio nasceu na aldeia Katõ, que fica no alto Tapajós. Sua família se mudou para a aldeia Praia do Mangue, em Itaituba, nos anos 2000. Segundo o professor, seus parentes ficaram irados com o resultado da pesquisa da Fiocruz. “A gente não sabia, ficamos com medo”. Honésio conta que entre os peixes preferidos da sua família estão espécies carnívoras.
A difícil mudança de hábitos
A primeira vez que o cacique Juarez Saw Munduruku ouviu falar sobre a contaminação por mercúrio foi com o adoecimento do amigo ambientalista Cássio Beda, que integrou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e auxiliou a população da Sawré Muybu na autodemarcação do território.

Cássio foi diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), doença degenerativa que progrediu rapidamente a partir de 2017. Ele faleceu em 4 de abril de 2021. Durante seus últimos anos de vida, o ambientalista foi alertado da suspeita de que o desenvolvimento da doença poderia estar relacionado à contaminação por mercúrio.
Em um vídeo gravado por Beda em 2018, ele chegou a afirmar que seus sintomas eram semelhantes aos da doença de Minamata, síndrome neurológica causada pelo envenenamento por mercúrio.
O nome da doença faz referência à contaminação em massa dos moradores do município japonês de Minamata, onde, entre 1932 e 1968, mais de 5 mil pessoas foram contaminadas gravemente com dejetos de mercúrio descartados por uma indústria da corporação Chisso. O desastre, que provocou a morte de cerca de 700 pessoas, levou à construção da convenção de Minamata, promulgada em 2018. O tratado ambiental, do qual o Brasil é signatário, tem como objetivo proteger a saúde humana e o meio ambiente dos efeitos adversos do metal tóxico.
A gente tenta se adaptar, mas se não tiver outros peixes a gente tem que comer o que pescamos.
Juarez Saw, Cacique Munduruku
Foi a partir do adoecimento de Beda que as lideranças Munduruku solicitaram que os níveis de mercúrio fossem testados. No entanto, apesar dos resultados, cacique Juarez revela preocupação em relação às mudanças de hábitos alimentares. “A gente tenta se adaptar, mas se não tiver outros peixes a gente tem que comer o que pescamos”, afirma. Os peixes são a principal fonte de proteínas dos Munduruku e a maior apreensão do cacique é com o futuro. “Essa geração de crianças não pode continuar comendo peixe contaminado”.
Peixes carnívoros





Segundo Juarez, no inverno Amazônico, temporada de cheia dos rios, é difícil selecionar os peixes consumidos. Nessa época, os peixes nadam mais fundo e os Munduruku pescam com varas, conseguindo um peixe por vez. Na seca, com os peixes concentrados no raso, os indígenas pescam com redes deixadas por horas entre árvores. “No verão até dá para escolher o peixe que a gente quer, dá pegar curimatã, jaraqui, pacu”, resume o cacique, citando alguns peixes herbívoros.
Belíssima reportagem. Rica em detalhes e ilustrações. Mas ao lado de uma matéria tão bem elaborada, fruto de tanta pesquisa, uma tragédia silenciosa, profunda, que contamina e mata. De um lado a ganância humana e a impunidade, do outro, a população indígena invadida em suas crenças e cultura sendo levada a mudar seus hábitos e costumes para manter viva a sua chama. Chama que clama por ações mais justas, que chora ao ver a contaminação acabando com nossas riquezas mais caras: a água, os peixes e o ser humano.
Parabéns à Julia Dolce, a InfoAmazonia e o Report for the World.
Parabéns pela matéria é realmente lucidando o perigo do mercúrio e do garimpo clandestino . Pois existe outras metodologias para separar o ouro